Apresentação

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"Não há como fugir do ontem porque ontem nos deformou, ou foi por nós deformado. (...) Ontem não é um marco de estrada ultrapassado, mas um diamante na estrada batida dos anos e irremediavelmente parte de nós, dentro de nós, pesado e perigoso." (Samuel Beckett em Proust)

"- Eu gosto de filmes que são enigmas... e você?
- Eu? Ah... gosto de filmes que logo esqueço.
- Onde será que vão parar todos esses filmes que vemos?"
- Em algum lugar na memória.
- Mas... e se esquecemos?
- Esquecemos, para sonhar." ( anônimos... na fila do Indie)

Suas memórias não são como as minhas. Posso muito bem lembrar de algo que você já esqueceu, podemos viver juntos e nos lembrarmos de coisas completamente distintas. Uma mesma cena, na infância, traz lembranças diversas. Eu posso lembrar de algo que inventei para mim. Para cada memória um lastro, um caminho trilhado, uma causa, ou uma invenção, um real que se constrói - mas não o real de "realidade", do documento de identidade ou do número do telefone da amiga, discado regularmente em 1987, que você jamais perdeu... um outro tipo de real. O real construído como síntese de algum não entendimento sobre você, quase genético, ou pós-genético, algo que nos torna mais humanos e menos autômatos. Algo que nos diz também sobre o esquecimento, que não é contrário a memória, faz parte dela. A memória é um misto deste esquecimento, coisas fragmentadas e desejos devorados pelo caminho, lastro (de novo), medo, perdas, coisas catadas daqui e dali, livros, filmes, viagens, contratempos, álcool, destemperos, desassossegos, trabalho, sexo, infância, pai, mãe e noites mal dormidas. Muitas noites mal dormidas arrastam a memória para o delírio, branco, vazio, breu, espasmos, inconsciência. Freud dizia: "só é possível lembrar porque é permitido esquecer", ao que Lacan complementou... "só o que pode ser esquecido, deve ser lembrado". Falavam do recalque que deve vir à tona, para apoteose analítica... reprimir, esquecer, lembrar...

As pessoas se apegam a objetos da memória como relíquia, guardam bilhetes do metrô de Paris, areia de Copacabana, pedras de algum lugar, fotografias de infância, brinquedos quebrados, ingressos de cinema, catálogos de festivais, bilhetinhos escritos à mão, pequenos "souvenirs", coisas "para lembrar", apego. O cinema é simbiótico à memória. Não precisaríamos lembrar de mais nada, teríamos as imagens. Mas se fecharmos os olhos... Imagens, palavras, cheiros. Você guarda o ingresso dos filmes que vê?

Para cada um, uma pequena lembrança, e uma conexão eterna com o cinema. Lembrar é trazer de volta: hong sang soo naomi kawase kyoshi kurosawa claire denis apichatpong weerasethakul béla tarr kazuyoshi kumakiri charles burnett, e dois grandes diretores, tão precocemente, in memoriam: koji wakamatsu, aleksey balabanov.

O Indie em seus 13 anos já guarda em si muitas memórias. Os primeiros garotos e garotas que vieram ao festival pela primeira vez, aos 18, hoje estão com 31 anos.

a minha memória de pequenos elementos... os ipês coloridos nas fotos, a marca Indie em letras garrafais na Afonso Pena, a sacola laranja, os bonequinhos colecionáveis de picote na capa, as pessoas que escreveram bilhetinhos no mural, as filas e a pressão do público para entrar nas salas, a bolsa que virava travesseiro, a camiseta roxa, o mapa mundi com a palavra Indie, a Praça da Liberdade em noite de lua cheia, o CineSesc lotado para Floresta dos Lamentos, para Mal dos Trópicos e para Matador de Ovelhas, as trilhas sonoras das vinhetas, os 8, 16, 35mm, os cabos, os digitais, as chantagens da máfia russa, a estante de objetos da Zeta para comemorar 10 anos, a construção do neon para a nova marca.

O Indie 13 traz este ano a memória da China, através da ousadia de Wang Bing e o inconsciente cheio de alusões ao prazer de Jean-Claude Brisseau. Wang nos conta, através dos relatos de seus personagens, tudo que foi condenado ao esquecimento e não poderia ser jamais lembrado pela história e situação política da China, nesse último século. Através de sua coragem, entramos num campo do "real" jamais revelado publicamente desta maneira.

Jean-Claude Brisseau, nos coloca diante da filosofia do prazer, a memória do inconsciente, os recalques, a pulsão sexual. E vai além, o indivíduo na sua relação com a realidade social e coletiva, quebrada pelo fantástico. Sexo, real e fantástico, a tríade da memória de Brisseau.

Nas memórias ainda a vir, futuras antologias propostas nesta edição, novas imagens irão marcar sua memória, nos filmes contemporâneos, a garotinha de Heli, a família cigana da Bósnia, a comida de Senada, os diálogos de Vic+Flo, o carrinho de golfe, a dor de um Japão pós-Fukushima, a pequena garota de máscara na escola, o Casanova catalão, a paixão da irmã pelo irmão, a larva azul, a música de Usptream Color, os wantons, as montanhas e o mar, e as impossibilidades do encontro amoroso. Filmes que para lembrar para sempre, basta esquecer.

Francesca Azzi
Diretora Indie Festival